É inegável que o Espiritismo tem conteúdo religioso, porque trata, de maneira clara, do problema da criatura em face do criador, estabelecendo princípios morais e filosóficos que ensejam aperfeiçoar-se para caminhar no rumo da perfeição.
Todavia, desde o seu início, há uma certa relutância em declará-lo religião. Como veremos mais adiante, Allan Kardec, apesar de reconhecê-lo filosoficamente como religião, se recusou a usar o termo para definir a Doutrina dos Espíritos.
É que a palavra religião se desgastou, no transcurso do tempo, pela deturpação que lhe impuseram as religiões.
À pergunta: O Espiritismo é uma religião? realmente, teremos que consultar, antes de tudo, o idioma de quem pergunta para buscar o significado da palavra religião, e examiná-lo em face dos princípios da Doutrina Espírita.
Como a Codificação Espírita nos veio do francês, através do trabalho de Allan Kardec, para que se o entenda, quando fala em religião, é muito importante buscar o seu significado original a fim de confrontá-lo com o do idioma para o qual seja vertido.
Segundo se lê no “Petit Larousse - Illustré”, edição de 1975, religião corresponde a : “culto prestado à divindade; doutrina religiosa: religião cristã”.
Examinando a primeira definição, faz-se necessário verificar o que entendem os franceses por culto. E no mesmo dicionário o verbete vem explicando como “homenagem que se presta a Deus: ofício divino”.
Como ainda a questão permanece obscura, precisamos deslinda-la, pesquisando o significado de ofício, que vem explicado,quanto à matéria religiosa, como sendo “conjunto de preces e de cerimônias litúrgicas”.
Substituindo-se, pelo seu significado, a palavra culto na primeira definição, teremos que religião é o conjunto de preces e cerimônias litúrgicas que se presta em homenagem à divindade.
Há que entender-se, ainda, que liturgia, no francês, significa “ordem de cerimônias e de preces determinada pela autoridade espiritual competente: Liturgia romana”.
E aqui a questão se complica porque no Espiritismo não existem cerimônias Litúrgicas.
A segunda definição – doutrina religiosa: religião cristã – no entanto, seria adequada e, nesse sentido, poderíamos afirmar, sem receios, que o Espiritismo é uma religião.
Acresce notar, ainda, que, nessa acepção – doutrina religiosa – , não está implícita a idéia de seita religiosa.
Peio que se deduz, no francês seria uma impropriedade dizer-se, por exemplo, religião católica, e isso se confere no já citado dicionário onde se lê: Catolicismo: “religião dos cristãos que reconhecem a autoridade do papa”. Portanto, uma facção dentro da religião cristã, ou uma seita, que no francês significa ”conjunto de pessoas que professam a mesma doutrina”, e “conjunto daqueles que se desligaram de uma comunhão religiosa: a seita dos adventistas”.
Como se vê, a segunda definição examinada palavra religião se preta inteiramente para qualificar o Espiritismo como sendo uma religião.
Na verdade, deveriam existir dois termos para nomear idéias tão distintas.
Em face disso e porque na opinião geral prevalecia o primeiro entendimento – culto – , Allan Kardec, como se verá adiante, para evitar confusão, não se arriscou a dizer que o Espiritismo era uma religião.
Só por isso, por uma simples questão de palavras.
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No idioma espanhol, no entanto, a questão é ainda mais delicada, como passamos a examinar.
Segundo o “Diccionario de la Lengua Española”, da Real Academia Española, edição 1970, religião significa: conjunto de crenças e dogmas acerca da divindade, de sentimentos de veneração e temor para com ela, de normas morais para a conduta individual e social e de práticas rituais, principalmente a oração e o sacrifício para prestar-lhe culto.
Há uma segunda acepção de: ordem, instituição religiosa, como por exemplo Religião Católica, Religião Protestante e Religião Natural que, a toda evidência, no entanto, fica atrelada à primeira definição acima transcrita.
Não é por outra razão que nossos confrades dos países de fala espanhola se recusam a admitir o Espiritismo como religião, uma vez que nesta palavra, para eles, está obrigatoriamente implícita a idéia de práticas rituais e sacrifícios no culto.
Ao alinharmos estas considerações, nos veio à memória conferência pronunciada na VIII Conferência regional da CEPA, em Miami, em maio de 1980, pelo confrade Dr. Pedro A. Barbosa de La Torre, na qual o orador, de invulgar capacidade, se esforçava para refutar a idéia de ser o Espiritismo uma religião, enfileirando comparações com o culto católico e todas as suas práticas rituais, o que nos chocou profundamente, pela aparente impropriedade do cotejamento, uma vez que, para nós, a palavra religião não estava necessariamente ligada à idéia de culto, e muito menos com o culto católico. Mas, para ele, estava.
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Realmente, na língua portuguesa, o termo religião não tem a mesma conotação dos idiomas examinados.
Conforme se lê no “Dicionário Escolar do Professor”, organizado por Francisco da Silveira Bueno, edição 1962, que é uma publicação oficial, do Ministério da Educação e Cultura, e mais popularizadas, para nós, religião significa: conjunto de práticas e princípios que regem as relações entre o homem e a divindade; doutrina religiosa.
Ora, aqui não se fala em rituais ou sacrifícios, e muito menos em liturgia.
O Espiritismo tem práticas e princípios e que lhe são próprios e que se dirigem ao relacionamento entre o homem e a divindade. De outra parte, é, indiscutivelmente, uma doutrina religiosa.
Para nós não há qualquer obstáculo, de origem semântica, que nos impeça definir o Espiritismo como religião.
Aliás, o povo aceita essa idéia pacificamente sem confundi-la com as práticas e princípios de outras religiões.
Não é uma impropriedade dizer-se aqui no Brasil, a Religião Espírita; e nem isso pode sugerir a idéia de cultos, com cerimônias litúrgicas, que não estão implícitas na palavra religião, nem palavra culto a qual, segundo o Dicionário mencionado, significa adoração, veneração, que necessariamente não se fazem com práticas litúrgicas.
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Feitas estas considerações, verifiquemos como situou a questão o lúcido Codificador da Doutrina Espírita, em discurso que proferiu na Sessão Anual Comemorativa dos Mortos, na Sociedade de Paris, em 1º de novembro de 1868 e que se acha publicada na “Revista Espírita” de dezembro de 1868, ano XI, nº 12(Revista Espírita – ano 1868 – Edicel – págs.356/360, tradução de Júlio de Abreu Filho):
“Dissemos que o verdadeiro objetivo das assembléias religiosas deve ser a comunhão de pensamento; é que, com efeito, a palavra religião quer dizer laço. Uma religião, em sua acepção nata e verdadeira, é um laço que religa os homens numa comunidade de sentimentos, de princípios e de crenças. Consecutivamente, esse nome foi dado a esses mesmos princípios codificados e formulados em dogmas ou artigos de fé. E´neste sentido que se diz: a religião política; entretanto, mesmo nesta acepção, a palavra religião não é sinônimo de opinião; implica em uma idéia particular; a de fé conscienciosa; eis porque se diz também: a fé política.”
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“O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é, pois, um laço essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e não somente o fato de compromisso materiais, que se rompem à vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, como conseqüência da comunidade de vistas e sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião da família.
Se assim é, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida senhores. No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos glorificamos por isto porque é a doutrina que funda os elos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as mesmas leis da natureza.
Por que, então, declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Porque não há uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; desperta exclusivamente uma idéia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí senão uma nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com o seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e privilégios; não o separaria das idéias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes se levantou a opinião publica.
Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis porque simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.”
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“Crer num Deus todo-poderoso soberanamente justo e bom; crer na alma e em sua imortalidade; na pré-existência da alma como única justificação do presente; na pluralidade das existências como meio de expiação; de reparação e de adiantamento moral e felicidade crescente com a perfeição; na equitável remuneração intelectual; na perfectibilidade dos seres mais imperfeitos; na do bem e do mal conforme o princípio: a cada um segundo as suas obras; na igualdade da justiça para todos, sem exceções, favores nem privilégios para nenhuma criatura; na duração da expiação limitada pela imperfeição; no livre arbítrio do homem, que lhe deixa sempre a escolha entre o bem e o mal; crer na continuidade que religa todos o seres passados, presentes e futuros, encarnados e desencarnados; considerar a vida terrestre como transitória e uma das fases da vida do Espírito, que é eterna; aceitar corajosamente as provações, em vista do futuro mais invejável que o presente: praticar a caridade em pensamentos, palavras e obras na mais larga acepção da palavra; esforçar-se cada dia para ser melhor que véspera, extirpando alguma imperfeição de sua alma; submeter todas as crenças ao controle do livro exame e da razão e nada aceitar pela fé cega; respeitar todas as crenças sinceras, por mais irracionais que nos pareça e não violentar a consciência de ninguém; ver enfim nas descobertas da ciência a revelação das leis da natureza, que são as leis de Deus: eis o credo, a religião do Espiritismo, religião que pode conciliar com todos os cultos, isto é, com todas maneiras de adorar a Deus. É o laço que deve unir todos os Espíritas numa santa comunhão de pensamentos, esperando que ligue todos os homens sob a bandeira da fraternidade universal.”
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O Espiritismo é uma religião?
Se a pergunta for feita na França ou em país de idioma espanhol, o mais prudente será copiar a atitude de Allan Kardec e dizer que, filosoficamente, o Espiritismo é uma religião, mas, no sentido vulgar do termo não, porque lhe falta qualquer prática litúrgica.
Se, porém, a pergunta for feita no Brasil, poderemos responder que sim, o Espiritismo é uma religião, na acepção vernácula do termo.
É indubitável que os princípios e ações contidos no “credo”, acima transcrito, elaborado pelo codificador, caracterizam uma religião, e uma religião respeitável e sublime.
E essa diferença toda porque o idioma dos homens não contém palavras adequadas para definir cada idéia.
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A propósito de palavras, é oportuno que se examine, finalmente, uma outra questão, de conotação religiosa, suscitada, entre nós, pelo problema das palavras.
Quando Allan kardec principiou “O Livro dos Espíritos”, sua primeira preocupação, como se vê na “Introdução” , foi criar termos especiais para a Doutrina.
Assim é que criou o termo Espiritismo para diferenciá-lo do espiritualismo, que abriga muitas doutrinas que não são idênticas à Espírita.
Espiritismo, portanto, deveria ser – e essa foi a intenção – um termo particular, para designar a Doutrina Espírita contida nos livros da Codificação, entre os quais temos “O Evangelho segundo o Espiritismo” que, por sua vez, incorporou os ensinos de Jesus Cristo, contidos nos evangelhos.
Ocorre que, atualmente, costuma-se designar por Espiritismo qualquer corrente que a se ocupe com a manifestação dos Espíritos, sem examinar-se o conteúdo de sua doutrina.
Por zelo igual ao de Allan kardec no uso das palavras, é de supor, os Espíritos, nas obras escritas de nossa bibliografia mediúnica, passaram a se expressar com os termos Espiritismo Cristão e Espiritismo Evangélico, com o fim de se evitar confusão e evidenciar tratar-se da Doutrina Espírita, que se assenta sobre os fundamentos cristãos contidos na Codificação Kardeciana.
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Respondendo, a Allan Kardec, a questão n.º28 de “O Livro dos Espíritos”, assim se manifestaram os Espíritos:
“As palavras pouco nos importam. Cabe a vós formular linguagem adequada a vos entenderdes. As controvérsias surgem, quase sempre, por não vos entenderdes sobre as palavras, visto que vossa linguagem é incompleta para exprimir as coisas que não ferem vossos sentidos.”
Portanto, o problema, que aqui tratamos, é de todos os tempos, a suscitar as mesmas incompreensões.
Na verdade, o capricho dos dicionaristas em definir as palavras ao sabor de suas próprias inclinações e interesses, e a ignorância das massas, que têm dificuldade para assimilar idéias novas, podem conduzir a muitas contendas inúteis em torno de simples palavras.
As palavras nascem de imagens. Se, às vezes, podem degradar-se, as imagens que as geraram, no entanto, permanecem inalteradas, reclamando apenas novas formas de expressão.
A mensagem da Doutrina Espírita, desde o início, está revestida de claridades inequívocas, e se revela, por si mesma, como uma doutrina religiosa de vanguarda para sustentar os conhecimentos dos tempos novos.
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Registremos alguns apontamentos do Benfeitor Espiritual Emmanuel, extraída do livro “Opinião Espírita”, 4a. ed CEC, 1973, psicografado por Francisco Cândido Xavier.
“Todos aqueles que negam a feição religiosa do Espiritismo, recusando-lhe a posição de Cristianismo Restaurado, decerto, ainda não abarcaram, em considerações mais amplas, a essência evangélica em que se lhe estruturam os princípios, nos mais ìntimos fundamentos.” (pág. 194)
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“Cremos de boa fé que todos os companheiros, propositalmente distanciados da tarefa religiosa do Espiritismo, assim procedem, diligenciando imunizar-nos contra a supertição e o fanatismo, que a plataforma libertadora da própria Doutrina Espírita nos obriga a remover, mas, sinceramente, não entendemos a Nova Revelação sem o Cristianismo, a espinha dorsal em que se apóia. Isso acontece, porque, se após dezenove séculos de teologia arbitrária, não chegaríamos compreender agora, no mundo, o Evangelho e Jesus Cristo, sem Allan Kardec, manda a lógica se proclame que o Espiritismo e Allan Kardec se baseiam em Jesus Cristo, de ponta a ponta.” (pág. 196)
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“Muitos companheiros, sob a alegação de que todas as religiões são boas e respeitáveis, julgam que as tarefas espíritas nada perdem por aceitar a enxertia de práticas estranhas à simplicidade que lhe vige na base, lisonjeando indebitamente situações e personalidade humanas, supostas capazes de beneficiar as construções doutrinárias do Espiritismo.” (pág. 92)
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“Reflitamos nisso e compreenderemos que assegurar a simplicidade dos princípios espíritas, nas casas doutrinaria, para as suas atividades atinjam a meta da libertação espiritual da humanidade não é fanatismo e nem rigorismo de espécie alguma, porquanto, agir de outro modo seria o mesmo que devolver um mapa luminoso ao labirinto das sombras, após séculos de esforço e sacrifícios para obtê-lo, como se também, a pretexto de fraternidade, fôssemos obrigados a desertar do lar para residir nas penitênciarias; a deixar o caminho reto para seguir pelo cipoal; a largar o prato saudável para ingerir a refeição deteriorada e desprezar a água potável por líquidos de salubridade suspeita.
Em Doutrina Espírita, pois, seja compreensível afirmar que é certo respeitar tudo e beneficiar sem complicar a cada um de nossos irmãos, onde quer que se encontrem, mas não podemos aceitar tudo e nem abraçar tudo, a fim de podermos estar certos.” (pág. 94).
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Como se vê, querer retirar, da Doutrina Espírita, o seu conteúdo religioso, por vaidades de passageiras posições no mundo, ou pretender tisná-la com a enxertia de princípios marginais, à conta de suposto universalismo, constituem posições enganosas que se esfumarão, a curto tempo, porque sendo o Espiritismo a Doutrina dos Espíritos, será sempre sustentado por eles na sua feição inseparável de Cristianismo Redivivo.